sexta-feira, 3 de junho de 2011

LIXO-QUE-NÃO-É -LIXO*; GENTE-QUE-NÃO-É -GENTE.

ARISTIDES ATHAYDE**

A buzina do carro, o berro do motorista, acorda o Maiorzinho:

- Sai da rua, maloquero de merda! Vai accabar causando um acidente!

Todo dia assim. O Maiorzinho já ia embalado pelo andar do carrinho, quando
chegaram no viaduto do Capanema. E ele adorava quando chegavam no viaduto.
Adorava ver a força do Pai, puxando firme o carrinho carregado de lixo.
Adorava quando a irmãzinha, assustada com a buzina dos carros que passavam,
raspando, encostando, com os motoristas xingando, agarrava forte, fincava as
unhinhas sujas no braço do irmão mais velho.

Ele, o Celso, o Maiorzinho, ia lá em cima no carrinho. No final da tarde, as
laterais do carrinho lotado e bamba eram calçadas com pedaços de madeirite e
papelão. O carrinho ia cheio, entupido até o alto. Bem no alto de tudo,
Celso e a irmã Jéssica, a Menorzinha. Puxando a carrocinha, o Pai. Ao lado
Pelé, vira-lata simpático e amarelo, companheiro, trotando, orgulhoso,
acompanhando a família. De seu lugar no monte de lixo, do alto do viaduto, o
Maiorzinho tudo via: a Cidade toda, as luzinhas nos prédios, os faróis dos
carros, o brilho amarelo da vila lá embaixo...

Acordavam cedo. Pouco falavam. Jéssica, a Menorzinha, nem falar falava.
Corriam a Cidade durante o dia. Voltavam a noite. E a noite, o Pai,
estropiado e sujo, agachado num canto do barraco, repetia o mesmo ritual:

Pegava a garrafa - e ai de quem mexesse na garrafa - e levava aos lábios a
cachaça confortante. A voz do Pai ia mudando. A fala ia virando música. A
música falava da Mãe. Da Mãe que tinha ido embora, que os tinha deixado pra
trás. A musica virava grito, o grito virava choro. Um choro cortado e
sangrado, um choro de dor Quando começavam os gritos do Pai, Celso pegava a
irmãzinha no colo, ficava escondido, quietinho, do lado de fora do barraco,
perto da casinha do Pelé. Se o dia estivesse frio, chamava Pelé com um
assobio e fazia do cachorro seu cobertor. E esperava, esperava, esperava,
até que o choro acabasse. E entravam e encontravam o Pai caído, dormindo,
babando, deitado no chão. A garrafa amarela em cima da mesa de metal
vermelho da Coca-Cola. Celso buscava o caminhãozinho de plástico, catado na
lixeira de um prédio, deitava a Menorzinha. Engolia o que conseguia
encontrar pela casa pra fechar o buraco no estomago. Fechar o buraco do
peito não conseguia. Aquele buraco, de não ter e de não ser, não fechava
nunca. Mas ele tentava, e tentando, acabava dormindo...



Na Cidade Perfeita, na Cidade que nem lixo tem, na Cidade do Lixo-Que-Não-é
-Lixo, milhares de famílias vivem como a família de Celso, como a família do
Maiorzinho. Vivem em condições sub-caninas, vivem como urubus, carniceiros,
necrófagos. Comem o que a Cidade Perfeita rejeita, o que a Cidade de Sonho
excreta. Comem o que não serve para as gentes da Cidade de Primeiro Mundo.

Por que na Cidade Perfeita, na Cidade de Primeiro Mundo, esse é o papel que
lhes cabe. Gente, nessa Cidade linda, ecológica, eles não podem ser. Para
ser gente, em Curitiba, é preciso ter dinheiro para o ônibus. É preciso
separar o lixo. É preciso gerar lixo. Para ser Gente, em Curitiba, é preciso
andar de bicicleta no parque, passear no Shooping, ir ao Teatro, viver no
Centro.

Os habitantes da Cidade Perfeita separam o Lixo do Lixo que não é Lixo e se
separam das Gentes que Não São Gentes. Excluem. Não enxergam. Ou fingem que
não enxergam pessoas e pessoinhas como o Maiorzinho, como a Menorzinha, que
não podem ser de Curitiba. Não enxergam carrinhos como o do Pai do Celso,
cheios de lixo, duas criancinhas amontoadas em cima de uma montanha de
sujeira. Não enxergam, por que, se enxergassem, a Curitiba na qual acreditam
deixaria de existir.

A Curitiba na qual acreditam, a Curitiba do Ecoville, do Champangnat, do
Jardim Botânico, passaria a ser a Curitiba do Bairro Novo, do Osternack, do
Pantanal, da Vila Érico Veríssimo, da Vila Zumbi, da Vila Pinto, do Cayuá. A
Curitiba, asseadinha e limpa, Suíça ou Belga, a escolhida dos loiros
Franceses, seria mais uma cidade brasileira. Mais uma cidade desigual. Mais
uma cidade como essas que mostram no Jornal Nacional, cheia de pobreza,
miséria, fome, violência e feiúra. A Curitiba de Primeiro Mundo seria, por
não ser crível, a Cidade que Não Existe.

É bem fácil acreditar que Curitiba é um pedaço da Europa, que é igual ao
Canadá. E só ligar a televisão e engolir as propagandas da prefeitura.
Propagandas que mostram gente bonita, gente com todos os dentes na boca. E
só acreditar nos cartazes que NÃO mostram a carinha suja do Maiorzinho, o
medo nos olhinhos da Menorzinha, o sangue na mão e os calos no coração do
pai carrinheiro.

Por que na Cidade Perfeita, é melhor ser crédulo. E melhor acreditar em
qualquer besteira. E melhor fingir que problemas não existem, que pobreza
não existe. 'Temos que ter orgulho da nossa Cidade', diz o Prefeito, e a
nossa Cidade, a Cidade do Lixo que Não é Lixo, não é a Cidade das Gentes que
Não são Gente.

E enquanto a Cidade Perfeita segue no carros que buzinam, enquanto a Cidade
dos Sonhos brilha nas luzes dos prédios, o Maiorzinho volta a pegar no sono.
E dorme. Dorme, mas não sonha. Por que sonhar é luxo. E por que sonhar e
para quem ainda acredita. O Maiorzinho só descansa. Descansa e sobrevive.


* LIXO-QUE-NÃO-É -LIXO é uma marca muito conhecida em Curitiba e no resto do Estado, dá nome a um programa, desde a "era Lerner", de coleta de lixo reciclavel, onde os moradores separam o lixo, e os caminhões de coleta, especificos para este programa, recolhem. Há uma enorme propagada em torno deste programa, com polpudas verbas publicitárias, maiores que o próprio programa, que faz parte de toda uma estratégia de construção da imagem da Curitiba "Capital Ecológica", em que pese a metade da sua população não dispor de serviço de esgoto tratado.  (nota de a. goulart)
 


** ARISTIDES ATHAYDE
Advogado, Professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de
Curitiba.

Mestre pela Northwestern University - Chicago, Former Chairperson da Camâra
de Comércio Brasil - EUA (AMCHAM), Membro da Câmara de Comércio Franco
Brasileira e da ICC - International Chamber of Commerce aristides@aristides

athayde.com. br

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